domingo, 13 de agosto de 2006

Flequillo





Pode parecer besteira dizer isso, mas cortar os cabelos em outro lugar que não no salão de beleza onde o teu cabeleireiro trabalha é sempre um pesadelo. Pode ser em outro bairro, em outra cidade, em outro país, sempre é algo com que se preocupar bastante. Tenho um grandessíssimo amigo (ele próprio sabe que estou falando dele) que isso o incomoda a tal ponto que ele, que mora em outra cidade, só corta os seus cabelos quando vai a Curitiba.

Quando morei na França, passei por essa situação periclitante (de ter que cortar os cabelos com outra pessoa que não o meu cabeleireiro) umas tantas vezes. A primeira vez que cortei os cabelos (que je me suis fait couper les cheveux) foi perto da Gare de l´Est, em um salão de beleza de uns argelinos. O argelino em si era muito simpático, mas o maldito corte de cabelo que ele me fez, Jesus!, quelle merde! Saí irritadíssimo de lá, quase bufando de tanta raiva. No momento, tinha maldito todos os argelinos sobre a face da Terra, e o país deles também.

Mais ou menos um mês depois eu tive que cortar os cabelos de volta. Outra vez em Paris. Dessa vez, já prevenido pelo que poderia acontecer, fui em um cabeleireiro mais perto de casa (eu morava na Rue Piat, no 19ème), já sabendo que se o meu cabelo tivesse ficado aquela coisa eu teria que ficar menos tempo andando pela rua com aquela joça. O segundo cabeleireiro que tive foi um congolês, imigrante ilegal que tinha recém-chegado na França. Um pobre incauto, porém, tendo ouvido o meu relato até aqui, poderia me fazer a seguinte pergunta: "Mas por que cargas d´água você foi cortar os teus cabelos justamente com essas pessoas e não procurou um cabeleireiro mais, digamos, profissional?" Respondo: simplesmente porque pagar 30, 35 euros por um corte de cabelo, sendo que 1 euro, na época, valia mais ou menos 4 reais, me pareceu um pouco demais da conta. Ou seja, tive que deixar os cabelos à sorte e esperar que o caríssimo congolês fizesse o seu trabalho como eu queria. Disso se pode fazer uma outra pergunta: "Por que diabos é tão difícil de o cidadão fazer o corte que você queria, sendo que ele era supersimples?" Respondo eu mais uma vez dando um exemplo. Imagine você na situação de ter que explicar para uma pessoa que não é da tua cultura, que não fala a tua língua e que, sobretudo, mais que sobretudo, não tem os mesmos instrumentos de trabalho, que você quer um corte de máquina número 6 do lado, número 8 em cima, no cocuruto, que o cabeleireiro deve fazer isso em degradé para que não fique feio nem discrepante, que depois você quer que ele faça o pezinho, ajeite os pés das orelhas e não deixe a franja reta e sim salpicada? Já não é fácil dizer isso em português, imagine agora em outra língua, sem saber nenhuma dessas palavras a não ser cortar os cabelos (couper les cheveux) e, ainda mais, sem saber que o teu corte é assim.

Pois bem, quando fui nesses cabeleireiros todos, eu não sabia que o meu cabelo era cortado assim. Eu ia no Mariano, sentava na cadeira, perguntava como ia o Paraná Futebol Clube (seu time do coração), falávamos de futebol, xingávamos alguém, eu levantava, pagava os mesmos R$ 10 de sempre e ia embora mais que satisfeito. Tudo isso em no máximo 10 minutos.

Voltemos então ao congolês, e, por conseguinte, ao argelino. Como lhes dizer que eu queria tudo isso sem saber que era isso que eu queria e ainda em outra língua, cujos vocábulos específicos da arte de cortar os cabelos eu desconhecia? Não tinha como, pelo menos não achei como dizer. Resumo, fui embora do congolês mais bravo ainda do que tinha ido embora do argelino.

A terceira vez, disparadamente a mais traumática de todas, foi em Gerzat, cidade-satélite de Clermont-Ferrand, onde eu dava aula quase todos os dias. Saindo de um dia cheio de aulas, lá pelas 15h (em geral, as aulas de colégio, na França, terminam a essa hora), peguei a ruazinha que me deixava no ponto de ônibus. No caminho, cruzei com um salão de beleza masculino meio escondido. Pensei: "Salão de beleza escondido, será? Por que não? O cara já deve ter a clientela dele, deve ser um cara bom." Entrei, sentei e comecei a explanar a minha situação. Eu sou brasileiro, queria cortar os cabelos, já tentei duas vezes em Paris e não deu muito certo, saí chateado, queria um cabelo assim e assado. O cara me disse para eu não me preocupar que ele ia fazer exatamente o que eu estava pedindo. Sentei na cadeira, ele a abaixou e começou a conversar comigo. Começou a cortar aqui, ali, passou a máquina acolá... Tudo parecia muito com o jeito do Mariano e por isso me deixei relaxar.

(Para continuar essa história, é importante ressaltar um detalhe fundamental da minha pessoa: eu uso óculos. Ou seja, quando sento na cadeira do cabeleireiro, sou obrigado, por não poder atrapalhar o seu serviço, a tirar os óculos, o que me dá uma desvantagem moral e visual considerável.)

Pois bem, me sentei, me acostei e deixei que fizesse o seu serviço. Começou a me perguntar sobre o Brasil, sobre o que eu estava fazendo ali em Gerzat, onde morava, etc. A conversa correu bem, agradável, até quando ele levanta a cadeira e me diz: Ça y est, quoi! (Tá pronto!). Peguei os meus óculos e, ao ver o meu reflexo no espelho, fiquei branco de medo e terror. Carai, que merda aquele sujeitinho tinha feito. Ele simplesmente tinha cortado tanto o meu cabelo que eu estava quase como se fosse com a máquina 2. Filho de uma mãe mal parida, isso sim! Irritado, levantei, paguei (6 euros, valor bem chamativo; em resumo, pega-trouxa), lhe disse C´est vraiment n´importe quoi. Très bien, monsieur! e fui embora bufando de raiva. Tive tanta raiva que naquele momento, se eu tivesse cruzado com La Vache, eu juro que tinha largado a mão naquela energúmena. Depois disso, fiquei mais de um mês e meio sem cortar os cabelos puto da cara com os coiffeurs.

Tendo tudo isso em vista, ontem, sábado, que poderia muito bem ter sido fatídico, saí de casa pela manhã decidido a enfrentar mais um dos meus medos: cortar os cabelos com qualquer outra pessoa que não seja o Mariano (São Mariano!). Já tinha, no dia anterior, sexta-feira, meio que olhado por tudo atrás de um cabeleireiro que me parecesse mais ou menos passável. Perguntei às pessoas, a uma atendente da imobiliária, e acabei chegando, nessa mesma sexta, a uma tal de Peluquería na Calle Yerbal. Quando estava por entrar, recebo um telefonema do Camilo me dizendo que os móveis que tínhamos comprado no Easy iam ser entregues dentro de poucos momentos. Eu, que já estava com a mão na maçaneta, soltei e voltei para casa a trote. Sorte minha. Imagino que Deus, muito bondoso para com a minha pessoa, deve ter se apiedado desse pobre mortal e feito com que os entregadores da Easy telefonassem para o Camilo e ele, mui prontamente, me ligasse e me pedisse para vir para casa ajudá-lo a trazer tudo para cima. Ligaram, o Camilo ligou, eu soltei a maçaneta e voltei. Acabamos passando o dia todo em cima dos móveis, montando o armário de cozinha, a mesa da sala, a minha mesa, arrumando o colchão e outras coisas. Deixei o cabeleireiro para o outro dia.

No sábado de manhã, como disse, mais que decicido a cortar os cabelos, já me sentindo mais que incomodado com aquela juba de leão e com aquela barba de soldado no front, saí de casa direto para o salão da Yerbal. Quando voltei a pôr a minha mão na maçaneta, vi pela vidraça uma mulher me fazendo sinal de não, que ali era uma peluquería só de senhoras. Me indicou o salão que estava no outro lado da rua. Atravessei a rua e já de cara me dei com o modesto preço promocional de sábado: 17 pesos. Pensei: "Nem fodendo!" Resolvi voltar para a Avenida Acoyte, avenida principal, e procurar outro. Já ali naquela mesma quadra, escondido no fundo de uma galeria, encontrei a Peluquería Hector. Vai ser aí mesmo, pensei eu com os meus botões, e que seja o que Deus quiser. Entrei, saudei todo mundo e já fui falando com o cabeleireiro. Disse a ele que queria cortar os cabelos. Me pediu para sentar. Ele estava terminando de passar uma meleca branca no cabelo de uma senhora que não parava de reclamar que o seu neto não saía da frente da tv. Assim que ela levantou e foi para o fixador de cabelos, o Hector me pediu para sentar. Sentei e comecei a explicar-lhe toda a situação. Lhe disse que era brasileiro, que queria cortar os cabelos, que isso e que aquilo. Desse vez, no entanto, saí de casa mais que preparado. Sabia como tinha que ser cortado o meu cabelo (quando voltei da França, pedi ao Mariano que me explicasse como ele fazia para cortar as minhas longas tranças), estava com um dos pentes da máquina. O fator contra a minha pessoa era, nem menos importante, o castelhano. Expliquei tudo para ele e ele me disse: No te preocupes, muchacho, que te vas a salir muy conforme de acá. Vixe! Flashback total. Mas resolvi encarar.

Tirei os óculos (me entreguei ao inimigo), tentei relaxar e comecei a conversar com ele. Perguntei da vida dele, de por que tinha aberto uma peluquería, etc. Ele perguntou o que eu fazia em Buenos Aires... E assim foi a conversa.

Hector deve ter levado mais ou menos, segundo os meus cálculos, uns 30 minutos para cortar os meus cabelos. Ele teve que cortar em baixo com a máquina 3 (na Argentina, os números dos pentes das máquinas de cortar cabelo são diferentes; por quê, Deus, por quê?) e fazer o cocuruto e o degradé tudo com a tesoura. Enquanto isso, a manicure e pedicure que trabalha ali com ele me ofereceu um café, que aceitei, gesto o qual achei muito simpático (bien el gesto).

Foi aí que ele disse Listo! Ai, Jesus Maria José, agora é a hora da verdade. Quando pus os óculos e me vi no espelho... Bah, ficou como eu queria. Obviamente não como o São Mariano faz, mas muito próximo, o mais próximo que já encontrei. Que felicidade no meu pobre coração de mortal que padece das misérias do mundo. Para terminar em grande estilo, o Hector ainda se deu o trabalho de pegar uma ficha, anotar o meu nome e pôr, passo a passo, como ele tinha cortado o meu cabelo, para, caso eu voltasse, ele soubesse como tinha feito. Quando saí, lhe disse: che, creo que ganaste un cliente! Vamos ver agora se nos próximos dias o meu cabelo não se rebela e vejo que me meti em outra enrascada.

Glossário de apoio

peluquería
- salão de beleza
peluquero - cabeleireiro
pelo - cabelo
peine - pente da máquina
corte - corte
peinado - penteado, corte
hacer la nuca marcada - fazer o pezinho
flequillo - franja



5 comentários:

Marlon disse...

Vejo que o seu grande problema não é a dialética meu caro, e sim a FRESCURA!!! hahahaha

mas cá entre nós, cortar o cabelo com pessoa, que não a habitual, é um grande pesadelo pra qualquer mortal que tenha um minimo de vaidade, acho que dá pra ganhar muito dinheiro disponibilizando uma Maquina com pentes de numeração universal, não acha???

Ces't la vie (desculpe se estiver errado, pois mal domino o Portugues, quem dira o Frances)

Anônimo disse...

Neguinho neguinho...
só tú mesmo!
Saudade!

Anônimo disse...

Prueba.

Anônimo disse...

Prueba 2.

VRAPPO disse...

Cara! É logico que o cara não entendeu nada... ele é cabelereiro... e não cozinheiro... como é que é um cabelo salpicado na frente?