O sacrifício de ouvir o Camilo cantando durante a viagem foi enorme, mas conseguimos chegar são e salvos a Santa Lucía. O casal montevideano, ainda se negando a tomar mate com leite e coco, nos impôs sua cultura conservadora de tomar só com água e sem açúcar. Fico me perguntando: onde estão os malditos direitos humanos? Onde está a decência humana? Onde está a liberdade de expressão? Fomos tolhidos pela bombilla, senhores.
A vingança, porém, é um prato que se serve frio, e eu particularmente sou bem vingativo. Sendo assim, já que nossos pombinhos uruguaios estão vindo para o Brasil e provavelmente ficarão em casa... Como quem manda lá somos eu e Camilo, nada de mates retrógrados e conservadores. Sim ao mate com leite e coco! Caballiteiros do mundo e futuros residentes do São Francisco, uni-vos contra a massa e a alienação!
De qualquer forma, como éramos visita e estávamos em seu país, nos comportamos. Em outras palavras, enchemos o saco do Mauro para tomar o mate à la Caballito, mas não lhe impusemos nada. Ao contrário do que será aqui no Brasil, estejam certos disso.
Ficamos até altas horas na sexta conversando e comendo arepas. Mesmo assim, eu, como o bom madrugador que sou, acordei cedo. Também porque não podia dormir por conta do calor e dos mosquitos. Desconfio que minha insônia se deveu um pouco ao peso das arepas na minha modesta barriguinha. Camilo, a meu lado, na outra cama, chegou até a roncar, o salafrário. Quero impeachment do meu compañero de viajes. Quem vota sim?
Com sono ou com sono, acabei levantando, pegando um dos tantos livros que comprei pelas livrarias de Montevideo (adquiri Mankells, Benedettis, Onettis, Trujillos e um Rosencof) e me sentei para ler. Coei um cafezinho e comi asarepas que tinham sobrado da noite anterior. Imaginem o estufado que eu não estava.
Mui tranqüilamente, fui então lendo meu livro. À medida que o personagem principal de Os sapatos italianos, de Henning Mankell, ia descobrindo que tinha uma filha de quarenta anos e que sua namorada da juventude estava com câncer, meus queridos companheiros de mate conservador foram acordando. Creio que o Mauro foi o primeiro. Depois Ale, e por fim a pacotilla perezosa.
Já embetumados de protetor solar, fomos para a praia. O casal com seus apetrejos, eu e Camilo com nossa querida bola, já intimando o Mauro para aquele baba esperto à beira do mar.
Mal nos instalamos, já nos jogamos na água, que estava bem fria, há de se dizer. Mas como o espírito infantil e a vontade de jacarés era mais forte, não esmorecemos.
Eu, por nem ser cabeçudo e usar óculos, me ative tão-somente às caneladas. Ossos do ofício. Ale, evitando humilhar-nos, manteve-se zen e praticou seu taichizinho. Pudera Piper estivesse lá com ela.
Barrigas roncando e sol queimando, os filhos pródigos à casa retornam. E para almoçar: espaguete ao molho maurês. Especialidade da casa. Nem preciso dizer que comemos até explodir.
E depois? É claro que foram todos tirar aquela siesta amiga. Eu, mais uma vez não conseguindo conciliar o sono, fiquei lendo meu herói sueco.
Após o descanso, mais um pouco de praia e mais um pouco de técnica futebolística sendo demonstrada.
Foi quando, em meio a nossas bicicletas e voleios, uma tragédia aconteceu: nosso querido balón uruguayo viu seu fim prematuro. Pobre coitado!
Como nada se perde, tudo se transforma, reaproveitamos a bola e nos fabricamos um chapéu. Dizem que é a última moda em Milão.
Ansiosos pelo tão esperado evento do dia, regressamos com uma idéia fixa em mente: mandar boas vibrações para a aura parrillera do Mauro e devorar tudo o que ele ia fazer na churrasqueira.
Para quem não sabe, o camisa 9 da seleção celeste, grande cabeceador, também é um grande fazedor de churrasco. Aliás, sua fama é internacional.
Qual smurfs na mesa do Papai Smurf à espera da comida, batemos os talheres exigindo carne. No entretempo, uma partida de mancala para alegrar os incautos.
Abrimos a ronda noturna com uma molleja, que, em outras palavras, não passa de gogó de vaca. "Écate!" foi a primeira coisa que me veio à mente. Mesmo assim, e talvez mais por insistência do Camilo, acabei quase a contragosto provando.
Antes mesmo de pôr o pedaço de carne na boca, já estava fazendo careta. E sabem quê? É bom pra caralho! Confesso que não esperava nem um pouco gostar. Quem sabe por isso tenha curtido tanto. É simplesmente delicioso. Aconselho.
Na seqüência do nosso banquete parrillero, seguiu-se a morcilla (morcelha ou choriço) doce, recheada com nozes, e a salgada. Da doce, só elogios. Mauro é o cara fazendo churrasco. Quanto à salgada, minha antipatia diminuiu, mas não sei se pediria expressamente para comer.
The last but not the least, as lindas tiras de asado. E duas para cada um! Ai a balança...
Como acompanhamento, cerveza Patricia e vinho cepa Tannat.
Nem preciso dizer que fiquei no vinho. Excelente. Como os três preferiram a cevada, acabei tomando a garrafa inteira quase sozinho, que nem nos tempos de Caballito, quando eu matava um Flinca Flichman por noite no inverno.
Bebuns os quatro, não nos sobrou outra coisa que tomar copos de água antes de dormir e torcer para não amanhecermos com aquela puta ressaca.